quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A INAUGURAÇÃO DO RAMAL DE CALDAS

Conta o escritor Hugo Pontes, em seu "A poesia das Águas: retratos escritos de Poços de Caldas":

"Leopoldo Amaral

Nasceu em Campinas, São Paulo. Jornalista, escrevia suas crônicas para a Gazeta de Campinas. Esteve presente na inauguração do Ramal Ferroviário de Caldas — Estrada de Ferro Mojiana. Na ocasião pôde relatar, com rara felicidade, a presença do imperador Dom Pedro II e sua comitiva. Dentre os cronistas reconhecidamente competentes do final do século XIX, Leopoldo Amaral é considerado o mestre do “bairrismo” campineiro. Em sua homenagem, a Prefeitura de Campinas encomendou um busto do jornalista ao escultor Lelio Coluccini. Deixou os seguintes livros publicados: A cidade de Campinas em 1900; Campinas: Recordações (1927).

A crônica de Leopoldo Amaral, que encontramos publicada na Gazeta de Campinas em 1915, tem um grande valor histórico, uma vez o que o autor foi testemunha de rara importância, como cidadão e jornalista, da vinda de Dom Pedro II a Poços de Caldas naquele dia memorável de 22 de outubro de 1886.

Reminiscências — Ramal de Caldas
Corria o mês de setembro, uma das épocas em que afluem aos Poços de Caldas os banhistas, isto é, aqueles que ali vão procurar os benéficos resultados que as águas termais maravilhosas proporcionam à saúde mais ou menos alterada. Isto foi em 1886.
Éramos três os moços (como é bom e grato dizer-se isto), que nos achávamos no mesmo hotel e ligados por antigos laços de amizade.
Um, o dr. José Negreiros, belíssima inteligência cujo brilho iluminava um coração de ouro, tão cedo desaparecido dentre os vivos; outro, o dr. Júlio Mesquita, atual diretor chefe do Estado; e o outro finalmente aquele que vai ditando estas linhas.
A estrada de ferro ainda não estava concluída até lá. Os trilhos achavam-se a muitos quilômetros distantes. O transporte de passageiros fazia-se por obséquio de vagarosos trens de lastro, da estação de Caldas (depois Cascavel) até a ponta dos trilhos e, daí em diante em troles, através de escuras estradas de rodagem, a subir a serra, até que, a alta hora da noite, se chegasse moído ao termo almejado.
O número de prédios na vila podia, a esse tempo, orçar por cem, aproximadamente. Poucos hotéis, contando-se os principais que eram o da Empresa (incipiente) e o do Globo e o das Famílias.
Ruas, sem calçamento, atravessadas por pequenos córregos sem asseio.
Os que chegavam aos Poços quase como um dever procurar o médico, que ali residia, havia anos, rodeado de justo conceito como homem de ciência e como cavalheiro de fino trato, o saudoso dr. Pedro Sanches de Lemos, que desde logo captava funda simpatia e expontânea estima.
Era ele a crônica viva da localidade, conhecedor da sua história e de sua gente.
Tratando-se deste lugar, vem de molde, o seguinte trecho histórico traçado pela pena brilhante de Coelho Netto:
A vila de Poços côncava e mais funda do que uma cratera entre bordos de outeiros e montes, sob a doçura límpida de um céu desanuviado e azul, com a sua paz de campo quase entrado ao sertão é um fervedouro de águas maravilhosas.
Remotamente, em dias de quase extinta memória, quando as terras interiores eram apenas desbravadas pelos aventureiros que revolviam o solo, brocavam as rochas procurando avidamente diamante e ouro, os borbotões que escachoavam em repuxo, à flor da terra, só eram conhecidos dos animais que desciam as encostas e vinham lamber os sais cristalinos nos barreiros ou enchafurdar-se no lodo tépido como se conhecessem a virtude daqueles jorros que golfavam em olheirões ferventes, fumegando.
Data de 15 de julho de 1786 a primeira notícia escrita dessas águas, acusando a descoberta e preconizando os benefícios nelas colhidos por numerosos enfermos, muitos deles leprosos. Desde então começou a romagem para o vale feliz.
Ao tempo a que nos referimos — setembro de 1886 — a população de Poços aguardava ansiosa a conclusão dos trabalhos da linha férrea que a Companhia Mojiana estava executando.
Às tardes, à medida que o assentamento de trilhos se aproximava, havia uma verdadeira romaria, não só de banhistas, entre os quais muitas senhoras de moradores dali, ao ponto onde trabalhavam os operários.
Havia verdadeira satisfação pelo melhoramento extraordinário cuja conclusão se avizinhava, fazendo prever o desenvolvimento e a expansão que, naturalmente, adviriam para esse ponto tão procurado como centro de saúde.
E, nós, os três “moços” acompanhávamos com prazer aquelas manifestações de interesse pelo progresso local, já então começado com a construção do edifício de banhos ligado por um passadiço ao prédio do hotel da Empresa.
Estavam, na ocasião, ali em uso das águas, entre outras pessoas, ao que nos lembramos no momento: o general Couto de Magalhães; um patrício ilustre pelo talento e pelos serviços à pátria e cujas excentricidades despertavam a atenção dos companheiros de hotel. Exigia, por exemplo, que a comida essencialmente paulista, lhe fosse servida nas próprias caçarolas, a ferver. O dr. Joaquim de Paula Souza, amigo inseparável do general, médico, mas que não clinicava. Era um valente “sportman”: as tacadas e as corridas de cavalos, constituíam o seu maior encanto. Foi ele quem aventou pela imprensa a idéia da fundação do hipódromo campineiro; José Paulino Nogueira, estimado negociante em Campinas e que, três anos depois, no posto de honra de presidente da Câmara Municipal, de sua terra, prestou inolvidáveis serviços, desenvolvendo acertadas providências em favor da população assolada por medonha epidemia de febre amarela que, no princípio de 1889, explodira mortífera, enchendo de pavor os habitantes desapercebidos.
Por esses atos de benemerência, que jamais serão esquecidos, a gratidão popular colocou-lhe o retrato no salão nobre da Câmara Municipal e, esta deu o seu nome a um das principais ruas da cidade.
O lavrador Francisco J. de Camargo Andrade (conhecido por Chico Gordo) um bom amigo e atencioso cavalheiro, estimado de todos os companheiros de hotel, grande entusiasta das qualidades esportivas do dr. Paula Souza, e com ele cooperador na fundação do hipódromo campineiro.
Estávamos já nós, os três companheiros de hotel, de volta havia algum tempo, quando chegou o almejado dia em que se realizaria a inauguração do ramal férreo de Poços de Caldas.
Foi a 22 de outubro do referido ano de 1886.
Na manhã desse dia a “gare” da Companhia Paulista regurgitava. Famílias, autoridades, pessoas gradas, uma multidão, enfim, curiosa se espremia, ali, à espera da chegada do comboio de S. Paulo, em que vinham s.s. m.m. imperiais, o sr. D. Pedro II, a sua veneranda consorte e a sua comitiva que, tinham de honrar com a sua presenças as festas inaugurais do referido ramal.
Pouco tempo teve a curiosidade pública que aguardar a chegada do comboio, não podendo, por isso, sentir a prova do melhor da festa que é esperar por ela.
Ao som do hino nacional e vitoriado por estrondosa manifestação de entusiasmo, o trem aproximou-se, lentamente da plataforma aparecendo, então, os venerandos vultos dos imperantes (sic), sem aparato algum. Campinas, o baluarte dos republicanos, houve-se dignamente na recepção imperial. A Câmara Municipal, composta de nove vereadores, dos quais quatro pertenciam ao partido republicano, compareceu em peso, a receber o velho chefe da Nação. Foi um belo exemplo de educação cívica e de respeito à autoridade dominante.
Com ss. mm. vieram o ministro da Agricultura, conselheiro Antônio Prado; presidente da província, conde de Parnaíba; médico do Paço, visconde de Sabóia; presidente da Companhia Mojiana, dr. João Ataliba Nogueira (depois barão de Ataliba Nogueira) e outras pessoas de alta representação social, entre as quais os seguintes representantes da imprensa: dr. Paranhos Pederneiras, do Jornal do Comércio; Maximino Serzedelo, da Gazeta de Notícias; Múcio Teixeira, do País; dr. Rangel Pestana, da Província; dr. Américo de Campos, do Diário Popular; Mondim Pestana, do Correio Paulistano; Léo da Affonseca, do Diário Mercantil, aos quais aqui se reuniram os da imprensa campineira: Henrique de Barcellos e Antônio José Pereira, do Correio; Alberto Sarmento, do Diário; e o autor desta, da Gazeta de Campinas, e ainda o grande filólogo, Júlio Ribeiro. E o que a nossa memória tem conservado nesse largo período de vinte e nove anos.
Após pequeno descanso dos imperiais viajantes, entre significativas demonstrações de contentamento público, partiu o trem inaugural da Mojiana, composto de diversos carros, sendo um aberto, especial para ss. mm. e comitiva.
Outros conduziam famílias, convidados e gente da imprensa.
O comboio rodava suavemente e, entre os passageiros, predominava a nota alegre e comunicativa de satisfação por aquele importante acontecimento.
Em quase todas as estações intermediárias explodiam manifestações com flores e vivas de entusiasmo aos monarcas.
Nas de Anhumas e Tanquinho a nota, que despertou a atenção geral, foi dada por bandas de música composta de pretos, escravos de fazendas vizinhas, e que, com ardor patriótico, sopravam o hino nacional.
Essas bandas, um ano depois por uma fresca madrugada, abalaram das fazendas, quando os escravos, em massa, fugiam procurando a capital e Santos, por efeito de ativa propaganda abolicionista. Uma delas, certa noite, chegou a S. Paulo e foi surpreender, executando uma marcha festiva, o valente chefe dos abolicionistas, dr. Antônio Bento, em sua residência.
Deixemos, porém, esta digressão, e vamos ao nosso assunto. A viagem transcorreu sem outro incidente interessante, a não ser o seguinte:
Em S. João da Boa Vista o trem parou. Chovia copiosamente e a música do finado professor Azarias de Mello, que ali se achava, enchia os ares com os acordes do hino nacional.
Nesse momento alguém pediu permissão para vir cumprimentar o monarca que, bondosamente, a concedeu. Penetrou, então, no carro um cavalheiro alto, muito delicado e respeitável.
Dirigida a saudação, tirou da algibeira da comprida sobrecasaca uma folha de papel e, sem demora, recitou, lendo, uns versos de sua lavra, e entregou o autógrafo ao imperador. Sua majestade teve palavras de aplauso e de agradecimento para com o poeta. Ao retirar-se, porém, o poeta, o sr. D. Pedro II chamou a atenção do médico, que se achava ao seu lado, para os versos, dizendo, com singela bondade e a sorrir:
— “Estes são como os desejados pelo capitão-mor da “Morgadinha”: chegam ao fim do papel!”
A frase deu no goto e forneceu tema para boas palestras. O comboio continuou a viagem, a contornar a serra, até que, vencidos os duzentos e poucos quilômetros, entrou na “gare” de Poços de Caldas, no meio de alacre demonstração popular. Músicas e aclamações, bandeiras e flores em profusão.
Os imperiais viajantes e alguns da comitiva foram hospedados pelo coronel Antônio Teixeira Diniz, mais tarde agraciado com o título de barão de Campo Místico.
Outros ficaram em hotéis diversos.
No dia seguinte, dirigiu-se o sr. D. Pedro II, acompanhado de muitas pessoas, para o aprazível local, a Cascatinha, onde um artista tirou triunfante a fotografia do numeroso grupo.
A partida, em regresso, estava marcada para a manhã do dia seguinte. Ss. mm. tinham de ir a Ribeirão Preto e, dali, ao fim dos trilhos da linha Mojiana, entre Batatais e Franca.
Está, ainda, gravada na mente de muitos a lembrança das vertiginosas viagens do bondoso monarca. Ele não conhecia fadiga nem desânimo, não obstante os seus sessenta e um anos de idade, tantos contava ele a esse tempo.
Por isso, na manhã de 24, conforme o programa que havia traçado, declarou que seguiria.
Chovia pesadamente.
Não havia ali um carro. Veio um trole, sem animais.
Afirma o provérbio que quem não tem cão caça com gato. E a parte do felino bichano, dessa vez, coube a seis robustos pretos, escravos, transformados na ocasião em animais de tiro, do veículo imperial.
O imperador e a imperatriz tomaram assentos no trole, agasalhados de capas de borracha e guarda-chuva. E, sob o aguaceiro inclemente, foram conduzidos até a estação por esse meio original de tração animada.
A comitiva imperial, os representantes da imprensa e todos os viajantes, não tiveram outro remédio senão palmilhar o extenso caminho, chapinando o pesado lamaçal.
Daí a pouco a máquina deu o sinal da partida e, após calorosos vivas saiu o comboio imperial, resfolegante.
E foi assim aberto solenemente o tráfego dessa via de comunicação para o privilegiado centro — fonte de saúde — oferecida pelas afamadas águas termais e por um clima delicioso.

Campinas — 1915".

A mesma crônica foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 22 de outubro de 1915. Confira na imagem abaixo.

A seguir, o registro fotográfico citado na crônica e publicada no jornal.

Clique nas imagens do Memória de Poços de Caldas para ampliá-las.
"Povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la".

1 comentários:

Alvaro Danza Vilela disse...

Emocionante o relato histórico. Gratidão por compartilhar!

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