“Para construir são necessários anos de lento e laborioso trabalho. Para destruir basta o ato impensado de um único momento”. Sir Winston Churchill
Estrutura interfere na visibilidade da Estação, bem histórico protegido
É impressionante o que acontece com o patrimônio ferroviário brasileiro, e em Poços de Caldas não é diferente. Quem conhece ou se interessa, ainda que pouco, sobre a história da cidade, sabe que a Estação Ferroviária, localizada no centro da cidade, é tombada como patrimônio histórico, portanto (em tese) protegida por lei.
A mais recente agressão a esse bem histórico, cuja inauguração contou com a presença do imperador brasileiro Dom Pedro II, no dia 22 de outubro de 1886, veio novamente da prefeitura, justamente o organismo que deveria ser modelo de preservação da história de Poços de Caldas: trata-se da implantação de uma grande estrutura diante da edificação.
Contribuição negativa importante deu o Condephact -conselho municipal que carrega, no nome, "de defesa do patrimônio histórico", ao aprovar uma intervenção que descaracterizou talvez para sempre o já combalido ambiente da Estação.
Confira o longo relato a seguir, cujo foco é pelo menos tentar registrar e preservar esse (des) caso, para que as futuras gerações tenham conhecimento do que pode levar ao fim o acervo ferroviário da cidade, e quem o protagonizou.
Detalhe da parede lateral da Estação
No dia 7 de novembro de 2019 dava entrada no protocolo da prefeitura a documentação a seguir. Em papel timbrado com as marcas das empresas DME (cuja titularidade é da prefeitura de Poços de Caldas), além da PUC-Minas e do Instituto Federal do Sul de Minas o requerente, representando a "Equipe do Projeto de P&D", conforme se observa junto à assinatura, solicitou a autorização do conselho de defesa do patrimônio histórico para "a construção de uma nova estrutura (especialmente pensada para o contexto)". O documento destacou até mesmo que "serão disponibilizados bancos de madeira"...
Ao final, o documento disse tratar-se de uma "estrutura de mobilidade elétrica no estacionamento da Fepasa".
TRAMITAÇÃO NO CONDEPHACT
Detalhe da fachada da Estação, lado esquerdo
Apenas seis dias depois o projeto entrou na pauta do Condephact, sob o tema "Aprovação de reforma em ponto de ônibus e criação de carregador rápido de veículos e bicicletas em frente à Fepasa - Projeto apresentado pela Aneel", conforme apontado em ata, abaixo.
O assunto mereceu pouco mais de 20 linhas da ata (abaixo), portanto é difícil saber em detalhes o que efetivamente se discutiu ali, apesar da presença de "pesos-pesados locais", como um diretor do DME, representantes da PUC e do IF Sul de Minas e até mesmo do então secretário municipal de Planejamento. A ata destacou, por exemplo, o emprego de recursos públicos municipais no projeto: "o projeto contempla a remoção da fiação aérea do entorno da Fepasa e sua substituição por fiação subterrânea, a ser custeada pelo DME".
O Conselho, então, entendeu "que não há razões para oposição ao projeto apresentado" mas solicitou que "o módulo de cobertura do ponto de carregamento de veículos elétricos seja deslocado de modo a não ficar em frente ao corpo principal da estação Fepasa". Criou-se, aí, uma impensável divisão do prédio da Estação: o que pode e o que não pode ficar na frente do "corpo principal", como se a edificação fosse um patrimônio divisível. Era o prenúncio de que o problema tomaria contornos inimagináveis.
Em 20 de novembro de 2019, uma semana depois da reunião, o expedito Condephact encaminhou seu "ok" aos responsáveis pelo projeto.
TRAMITAÇÃO NA PREFEITURA
Os centenários Girador de Locomotivas e Caixa d´Água
O projeto, então, ficou cerca de seis meses em silêncio, dormitando pelo menos para a população. Não houve debate ou audiência pública, o que é surpreendente considerando a participação da PUC no processo, ainda mais num projeto com recursos públicos. Também sobre a Câmara Municipal não se tem conhecimento do assunto ter andado por lá. Sucederam-se os "avais" abaixo, de algumas secretarias municipais, o que causa ainda mais estranheza: como um projeto tão impactante não chegou de forma transparente ao conhecimento da população?
Todos os documentos acima são públicos e estão disponíveis no site da Câmara Municipal de Poços de Caldas, em
http://200.202.244.146:8080/consultas/materia/materia_mostrar_proc?cod_materia=80546 .
COMEÇAM AS OBRAS
Aspecto do beiral da Estação
A cidadania teve o primeiro contato com o assunto em outubro de 2020, por meio de uma reportagem do Jornal Mantiqueira, a partir de um edital do DME, cujo título foi "Trecho em frente à estação ferroviária
terá rede elétrica subterrânea".
O Mantiqueira destacou alguns trechos do edital: "A
implantação de redes subterrâneas apresenta benefícios associados tanto
para a concessionária de
energia elétrica quanto
para a população, com
impactos positivos. Além
da vantagem estética e despoluição visual, o sistema
de redes de distribuição
subterrânea (RDS) eleva a
confiabilidade do sistema
elétrico e dispensa a manutenção que ocorre normalmente em rede aérea,
tais como abalroamento
em poste e descarga atmosférica, acidentes com
terceiros ou animais, são
quase nulas".
Pareciam ótimas notícias: a fiação aérea iria sumir da frente da Estação, o que representaria "despoluição visual" e, pela lógica que envolve a legislação sobre patrimônio histórico, contribuiria para melhorar a visibilidade do bem protegido. Ledo engano.
Link da reportagem:
https://jornalmantiqueira.com.br/wp-content/uploads/2020/10/008_07_10_20.pdf
https://jornalmantiqueira.com.br/wp-content/uploads/2020/10/008_07_10_20.pdf
SURPRESA: BROTA UMA ESTRUTURA!
Instalação elétrica no interior da Estação (Foto: Sindserv)
Instalação elétrica no interior da Estação (Foto: Sindserv)
Chegamos a 2021. Uma Manifestação foi protocolada à Ouvidoria da Câmara Municipal, em 25 de agosto. O mesmo conteúdo foi enviado por email a cada vereador de Poços de Caldas. Alertava textualmente que "a intervenção está causando grave prejuízo à visibilidade da edificação tombada, portanto causa indignação ter sido aprovada por um organismo denominado 'de defesa do patrimônio histórico'. A lei é clara, não há brechas para alternativas como 'depende de onde se olha' ou 'mirando de frente à porta principal não há prejuízo'. O edifício da Estação é um projeto único, complexo e não faria sentido definir de onde pode ser observado sem obstruções". Nenhum vereador se dignou a responder diretamente.
Já a Ouvidoria da Câmara Municipal respondeu o seguinte:
"Rubens Caruso,
Para seu conhecimento, a resposta do poder executivo ao requerimento que foi feito, foi acompanhada de uma ata do CONDEPHACT, onde em uma reunião realizada, existe a autorização de tal construção.
Se preferir posso lhe enviar tal ata".
Dispensei o envio, considerando que a informação apresentada pela Ouvidoria era conhecida, inclusive constando na minha manifestação, acima: "De acordo com o publicado pela prefeitura, 'O projeto arquitetônico e paisagístico do eletroposto da Fepasa já foi aprovado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de Poços de Caldas (Condephact-PC)".
Em paralelo, os vereadores aprovaram um fraquíssimo Requerimento, pedindo informações ao prefeito sobre esse projeto. Apenas duas perguntas, diante de tanta complexidade, foram endereçadas ao Executivo:
"1- Há aprovação pelo CONDEPHACT para a intervenção feita defronte à Estação FEPASA? Se
afirmativa a resposta, favor enviar os documentos comprobatórios.
2- Houve alteração do perímetro do tombamento definido inicialmente do bem tombado?
Nem é necessário colar aqui as respostas da prefeitura. Na comunicação com a Câmara Municipal já fora informado que o Condephact havia aprovado a intervenção; de outro lado, é obrigação de um vereador saber que "alteração de perímetro de tombamento" implica em mudar uma lei, e deve passar pelo Legislativo. No site da Câmara Municipal é possível ver o destino do Requerimento: "Arquivo".
MANIFESTAÇÃO AO MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA
Detalhe da fachada da Estação
Fracassadas as tentativas de reverter a situação junto aos titulares do projeto e os representantes do Povo, restou recorrer ao Ministério Público Federal, afinal o patrimônio ferroviário de Poços de Caldas pertence à União.
Em 13 de setembro de 2021 foi protocolada a manifestação abaixo ao MPF em Pouso Alegre, que tem jurisdição sobre Poços de Caldas.
Em 13 de setembro de 2021 foi protocolada a manifestação abaixo ao MPF em Pouso Alegre, que tem jurisdição sobre Poços de Caldas.
POSICIONAMENTO DA PROCURADORIA DA REPÚBLICA
Instalação elétrica na secular Caixa d´Água
Autuado o documento, o MPF acionou o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), nos seguintes termos: "informe se a estação ferroviária de Poços de Caldas possui valor histórico-cultural de âmbito nacional, bem como esclareça se a instalação da estrutura em questão prejudica a visibilidade da estação ferroviária, de acordo com as normas técnicas de proteção do patrimônio histórico-cultural".
O Iphan respondeu: "informamos que não existem bem valorados pelo IPHAN no município de Poços de Caldas, sendo que a estação ferroviária local, assim como o conjunto ferroviário, são tombados pela Lei Ordinária 5376/1993. Nesse sentido não há como manifestarmos quanto as "normas técnicas de proteção do patrimônio histórico-cultural" do IPHAN que poderiam ser aplicadas nesse contexto de instalação de estrutura com potencial de prejudicar a visibilidade do bem" e, portanto, concluindo, "entendemos que qualquer questionamento acerca da prévia análise da referida instalação no entorno da Estação deve ser dirigida ao Município".
É triste constatar, mais uma vez, que uma cidade com tanto material que deveria ser objeto de proteção nacional não tenha "bens valorados pelo IPHAN". Por outro lado, se nem mesmo a municipalidade dá o devido valor à história da cidade, como imaginar que a União o faça?
DECLÍNIO DE ATRIBUIÇÃO DO MPF
Fachada da Estação
Em função do Iphan não reconhecer formalmente valor histórico-cultural nacional em qualquer patrimônio de Poços de Caldas -inclusive a secular Estação Ferroviária-, o MPF decidiu: "determino a remessa dos autos à Promotoria de Justiça
da Comarca de Poços de Caldas/MG, para ciência e adoção das providências que entender
cabíveis".
Em recurso à decisão do MPF, foi solicitada reconsideração sobre o envio ao MP estadual, destacando:
"1- o bem em tela é da União, conforme demonstrado na minha manifestação
2- o bem já está tombado por lei, reconhecido como de interesse histórico e cultural pelo organismo local denominado Condephact,
também demonstrado
3- decisão judicial com trânsito em julgado na Justiça Federal proposta pelo MPF em Pouso Alegre determinou que “O governo local
também deve abster-se de praticar qualquer conduta capaz de reduzir a visibilidade do bem”, igualmente demonstrado no
documento apresentado.
Portanto, o que se solicita é que a decisão judicial transitada em julgado (Processo n° 0000358-93.2012.4.01.3810), proferida pela
Justiça Federal, em ação movida pelo Ministério Público Federal, sobre bem federal, seja rigorosamente acatada, respeitada e
cumprida". A decisão está destacada mais abaixo.
Não adiantou: o órgão manteve a decisão mas trouxe uma fala importantíssima: "deve-se registrar que os fatos relatados pelo representante são graves e serão devidamente apurados pelo Ministério Público Estadual, o qual tem atribuição para tomar as medidas cabíveis".
Trecho da Plataforma da Estação
Em 6 de novembro de 2021, aniversário de Poços de Caldas, a estrutura foi inaugurada.
Com o pomposo nome de "Eletroposto de recarga rápida autossuficiente", de acordo com a prefeitura "localizado nas imediações da antiga estação ferroviária", o evento "contou com a presença de diversas autoridades, entre elas o presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), que declarou: 'Agora, como presidente do IEPHA, tive a oportunidade de vir e conhecer uma cidade tão bonita e em um momento tão especial, em que vocês trazem mais futuro e quando a gente reconhece que patrimônio hoje já não é mais a discussão sobre o prédio histórico, mas o recorte daquilo que a gente trouxe do passado e quer deixar para o futuro. Trazer uma estrutura que antevê técnicas futuras que, em algum momento, se tornarão patrimônio, em frente a algo que já é patrimônio, traz para nós uma discussão importante sobre o que é a tecnologia que a gente está produzindo e o que a gente quer levar para o futuro'". Entenderam? A estrutura se tornará patrimônio, de acordo com a autoridade estadual, enquanto a autoridade nacional se absteve de comentar.
Essas informações estão em
https://pocosdecaldas.mg.gov.br/noticias/pocos-de-caldas-inaugura-eletroposto-de-recarga-rapida-autossuficiente/ .
Com o pomposo nome de "Eletroposto de recarga rápida autossuficiente", de acordo com a prefeitura "localizado nas imediações da antiga estação ferroviária", o evento "contou com a presença de diversas autoridades, entre elas o presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), que declarou: 'Agora, como presidente do IEPHA, tive a oportunidade de vir e conhecer uma cidade tão bonita e em um momento tão especial, em que vocês trazem mais futuro e quando a gente reconhece que patrimônio hoje já não é mais a discussão sobre o prédio histórico, mas o recorte daquilo que a gente trouxe do passado e quer deixar para o futuro. Trazer uma estrutura que antevê técnicas futuras que, em algum momento, se tornarão patrimônio, em frente a algo que já é patrimônio, traz para nós uma discussão importante sobre o que é a tecnologia que a gente está produzindo e o que a gente quer levar para o futuro'". Entenderam? A estrutura se tornará patrimônio, de acordo com a autoridade estadual, enquanto a autoridade nacional se absteve de comentar.
Essas informações estão em
https://pocosdecaldas.mg.gov.br/noticias/pocos-de-caldas-inaugura-eletroposto-de-recarga-rapida-autossuficiente/ .
O que sabemos?
Não adiantou apontar insistentemente o erro à Prefeitura.
Não adiantou implorar ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico para rever a decisão.
Não adiantou levar a questão ao Ministério Público Federal, pelo fato do acervo ferroviário pertencer à União.
Não adiantou o MPF indagar ao Iphan se a Estação era alvo de interesse nacional.
Não adiantou apresentar a questão à Ouvidoria da Câmara Municipal.
Não adiantou enviar email a todos os vereadores -nenhum se dignou a responder.
Ficou clara a desigualdade na luta contra o aparato oficial e paraoficial -mesmo que isso signifique agredir de forma escandalosa, para quem quiser ver, a história da cidade.
Também não dá para competir com a inteligência de frases de efeito como a do atual prefeito: "Muita gente que tem seu carro elétrico e que não tem para onde ir, agora já pode vir para Poços de Caldas abastecer de graça".
É preciso reconhecer a derrota da cidade: Poços de Caldas perde, a população perde, a história ferroviária perde -isso tudo em nome de um discurso, de uma agenda pretensamente progressista.
Alguns dos "vencedores" estão na foto acima. Batamos palmas!
Clique nas imagens do Memória de Poços de Caldas para ampliá-las.
"Povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la".
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