terça-feira, 3 de maio de 2011

POÇOS NA MEMÓRIA

por Fátima Ricci
Aguar a rua, já viu? Não tinha calçamento nem asfalto. Minha rua, central, era pura terra batida. Cada moradora jogava água no seu “pedaço”. Só depois de domar o pó lá fora é que iam limpar dentro. Quase toda casa tinha alpendre, um quadradinho gostoso de ficar, ventilado e com sombra. Brinquedos espalhados, liberdade, fantasia boa, serenidade. Portões baixos, nem sempre com trinco. Não precisava. Grades e chaves também não. Trancar portas só à noite. Risco mínimo de furto ou roubo, tiro ou faca nem pensar, estupro ou seqüestro? Imagine…
E a gente temia o Zé Biri. Ele batia os pés e a gente corria. Certinho da cabeça certamente não era, mas, perigoso… Perigoso é o tráfico, e o álcool dirigindo. Também a indiferença e o desrespeito. Feras na coleira e no quintal. “Feras” sobre rodas com gana de correr, voar, sei lá! Zé Biri, coitado, era só diferente. Também havia os caiapós, da festa de S. Benedito. Minha avó alertava: “Eles vêm atrás da bugrinha, roubada deles, e levam meninas brancas!”. Mais branca que eu era difícil e eu me escondia: mal respirava! Claro que, nos caiapós, minha avó projetava seus medos de a neta cair em mãos estranhas e o medo, nestes casos, é bom companheiro. Fora isso a Festa era festa. Rodar no carrossel e olhar a serra verdinha, ao sol ameno, depois a roda-gigante, os carrinhos, a rua, depois tudo de novo. Em maio fazia frio. Ou melhor: gelava! Ir à Festa só de gorro, casaco e luvas! Saia pregueada de lã xadrez e sapato de verniz preto com meias brancas. Inocentes anos ’60…
Tudo era barato e todos tinham dinheiro. E dinheiro vivo… Muito poucos tinham carro. Normal era andar a pé. E a gente andava, sem medo e sem perigo. Proibido era falar com estranhos e olhar para dentro de bar. Sempre havia uma “vendinha” perto de casa, sorveteria, padaria e muita coisa boa, insuperável. Como a bomba e o canudo folhado recheados de creme da Padaria Santa Marina. E os inigualáveis Doces Mesquita? Em quadradinhos, num “tijolinho” caprichado, ou em pasta, com pedaços de ameixa preta! Seu Mesquita tinha um segredo e o doce não enjoava. Saudade imensa daquele senhor alto e amável! Leite a gente comprava na leiteria. Era entrar e vir o cheiro bom de leite fresquinho. Geladeira não fazia falta, porque o clima era bem frio, na época. Guaraná, Grapette e Crush, saborosos mesmo sem gelo e em garrafas de vidro.
Com a ditadura vieram a TV e o telefone, a Censura e o medo, mas também a presença maciça – e obrigatória – de estudantes nos desfiles oficiais. “Não ir” era impensável. A vantagem era que a criatividade das escolas dava show. As faixas contendo a platéia eram respeitadas e ninguém invadia o desfile. Mas quando entrava na avenida a banda marcial do Colégio Marista era difícil não se emocionar: muito vigor e competência com nenhuma timidez! Idem quanto aos Carnavais: a juventude em peso na praça, engajada e feliz nos blocos e blocões. “Arco-Íris”, “Saci-Pô”, disputa séria… “Domésticas de Lourdes”, bloco masculino de turistas de saia e avental, brincavam e faziam rir! Pernas peludas de meia e salto, trejeitos caricatos de empregadas do lar, barba e batom, beijo e bigode, enfim, passaram, se foram! Como se foi o corso nos Carnavais, em carros abertos e bem freqüentados, com música boa e sem grosseria. Violência e transgressão eram raras exceções…
   
Publicado originalmente aqui.


Fátima Ricci, de Poços de Caldas - MG,  tem crônicas e poesias publicadas em jornais, revistas e sites na Internet. Formada em Letras, considera a Literatura uma atividade lúdica e fascinante, seja no papel de leitora ou de escritora. Outros amores: cinema e música, dança e natureza, Andrea Bocelli e Poços de Caldas. Esta é sua sexta participação em antologias do Clube, o que considera uma honra. Uma frase: “O amor é a história da vida das mulheres e um episódio na dos homens” (Anne Louise Germaine de Stäel).
   

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